Capítulo 03 - Vocês não se cansam?
Certa vez me ousei a ser mais do que apenas um aluno. E sentado numa poltrona cinzenta que poderia valer mais do que um automóvel seminovo, encarei meu tio de forma pretensiosa, enquanto fechava a pasta de estudos e me virava em direção a ele.
— Robert, agora que me achou. O que pretende fazer? Sei que está me ensinando os negócios, e que um dia irei assumir tudo. Mas... O que você vai fazer depois?
Por alguns segundos ele voltou o olhar verde para mim, me analisando, analisando minhas palavras. Seu semblante sério foi de um tom ameno, até um suspiro convencido enquanto fechava o livro, e forçando o corpo girava a sua gloriosa poltrona branca para as vidraças atrás de si.
Naquele momento estávamos no 30° andar, e eu me questionei se ele queria vislumbrar a cidade, ou apenas não me encarar enquanto falava.
— Acho que, irei tirar férias. – Ele continuou virado para as imensas paredes de vidro. Agora em silêncio, observando a imensidão de prédios a frente do nosso, com as luzes da cidade acendendo como vaga-lumes no cair da noite.
— Tipo um mês? Então vai voltar depois? – Questionei curioso, enquanto me segurava para não levantar e ir ao seu lado. Queria ver sua face naquele momento.
O silêncio se manteve por mais alguns segundos, até ele se levantar da cadeira, e se aproximando do vidro a frente, tocar a palma de sua mão aberta sobre ele.
— Eu não sou como você pensa, Edward. Pra falar a verdade, eu nunca gostei disso aqui. Desse trabalho, de estar em um escritório.
— E o que você queria então? – O atrapalhei, dando o primeiro impulso para me levantar.
Ele sorriu, em silêncio. Mas de alguma forma eu sabia que estava sorrindo.
— Eu queria ser dublador. Cheguei a fazer alguns desenhos, por incrível que pareça, nenhum teve sucesso. Sua mãe era quem controlava tudo isso, era inclusive quem me protegia das broncas e incentivava. Você deve imaginar, seus avós odiavam o que eu planejava pra mim mesmo.
— Mas, por que dublador? Realmente é algo que eu nunca iria adivinhar, mesmo com dicas.
— Pra falar a verdade, eu queria ser ator. Porém digamos que eu não levo jeito pra isso. Sou meio desengonçado, talvez pela timidez na época. Eu fui rejeitado em uma audição, tinha por volta dos 12 anos. Fiquei tão triste na época. – Enquanto ele comentava, pude sentir certa amargura em sua voz, talvez por relembrar tanto o passado.
— Eu nunca iria imaginar, você não tem cara de quem seria dublador, desculpe. – Não sabia se o estava ofendendo. Mas imagine isso comigo, era difícil realmente.
Robert Porttman era o típico empresário inglês. Seus cabelos loiros o davam a pinta de um galã de filmes americanos. Porém ao mesmo tempo, sua postura incrivelmente ereta, os olhos verdes e os ternos caros, faziam ele parecer sério demais para conseguir ser alguém sorridente e alegre. Não que ele fosse triste, mas passava essa impressão.
— Quando fiz a audição, um dos produtores gostou da minha voz. Ele disse que eu não tinha muito jeito pra atuar com meu corpo, mas que talvez poderia me dar bem na dublagem. Fui convidado pra um teste, um personagem infantil em um comercial de shampoo. Pensei em recusar, estava muito triste. Mas sua irmã tomou a frente, e disse que eu estaria lá custasse o que for. E pelos próximos três dias ela garantiu de todas as manhãs, me fazer estudar sobre.
Mamãe era 7 anos mais velha que Robert. E pelo que dizia, era a típica pessoa abençoada com o dom da alegria. Conseguia inspirar as pessoas, emociona-las e cativa-las. Toda vez que ouvia sobre ela, me sentia mal por não tê-la conhecido.
— Então você planeja ser dublador de novo? – Meus pés finalmente tiveram coragem o suficiente pra se mover, e foi então que cheguei ao seu lado, parado frente ao vidro, observando a cidade de Londres.
— Primeiro eu vou viajar, tem alguns lugares que sempre quis conhecer. Depois vou dormir bastante, porque passei os últimos 20 anos acordando cedo todos os dias. E daí, quem sabe? Acho que irei fazer o que der na telha, sem medo. – Ele sorriu de novo, e pela primeira vez pareceu alegre, pois havia som em seu sorriso. Uma risada estranha, mas que me cativou de alguma forma.
— Então vai virar um vagabundo? – Flexionei a sombracelha de supetão, o encarando sem medo.
— Se você me ensinar direitinho, talvez. – Ele riu, dando o troco a minha pergunta.
— Você nunca será tão bom quanto eu. – Comentei, com um olhar convencido e pouco inabalável.
— Eu sou bem competitivo, não é bom duvidar de minhas capacidades. – Ele deu de ombros, se virando e voltando a se sentar. – Mas sabe, Edward?
— O que? – Voltei calmamente a minha poltrona, no meio da sala.
— Não é como se eu estivesse prendendo você a essa vida. Você será o dono, isso é fato. Mas não é como se precisasse ser apenas isso.
— Você foi apenas o dono. Por que comigo deveria ser diferente? – Questionei, enquanto esticava os pés e colocava em cima da mesinha de centro a minha frente.
— Eu tinha um propósito, de achar você. E independente dos modos, consegui. Não é como se eu estivesse focado apenas no trabalho. A vida é assim. Não me importo de ter me afastado de outras coisas das quais gostava, ou de não ter tido filhos ou uma esposa.
— Você... não se sentiu sozinho? — De alguma forma, consegui dizer aquelas palavras. Fazia tempo que isso me rodeava.
Já havia se passado dois anos, desde que eu acordara naquela cama luxuosa. Já havia completado minha vingança, e ultimamente só passava os dias estudando, com Keito ou com meu tio. Ele por outro lado, continuava focado nas empresas, administrando tudo, viajando e me preparando.
— Quando você tem um propósito real, que signifique a sua existência, nada mais no mundo importa. Alguns dias chove, outros o sol é forte. Mas se o seu propósito é verdadeiro, nada irá te abalar. Eu segui o que acreditava, e vivi por meu propósito. E conquistei, você está aqui a minha frente.
— Robert, o que quer me dizer com tudo isso? Não gosto de enrolação. – O encarei por uns instantes com seriedade, era a primeira vez que ele dizia algo próximo de uma lição de moral.
— Que eu irei procurar o meu novo propósito, e que você estará livre pra ser independente. Você se vingou, está cumprindo sua parte do acordo mas sei que no fundo, não sente vontade de viver.
Robert se levantou, e calmamente passou ao meu lado, até chegar a porta que saia da sala e levava aos corredores. Seus sapatos negros feitos do mais rico e belo material, ecoaram pela sala, como o ponteiro de um relógio.
— E o que acha que eu deveria fazer, tio? – Já imaginava a resposta que viria a mim, mas talvez por falta de intuito próprio, queria saber a opinião de alguém talvez mais sábio.
Por alguns segundos o silêncio se fez na sala. Eu não conseguia o encarar. O chão brilhoso e absurdamente limpo, possuía algumas pequenas peças em um azul escuro, por onde eu podia ver meu próprio reflexo abatido.
A porta se abriu, rangendo bem devagar.
— Isso é algo que você só irá descobrir, se resolver dar o primeiro passo. Essa não é a última vez que você vai se sentir sozinho. Quando achar um novo propósito, dê o seu melhor pra fazer durar. Apenas isso. E se acabar esse novo propósito, procure outro.
E sem mais nem menos ele saiu, fechando a porta com uma calma que sempre me espantava. Agora estava eu, uma sala vazia, e milhões de pensamentos na cabeça.
— Dias Atuais —
Enquanto meu novo celta rodava pela cidade, aquelas lembranças vagavam em minha mente, ao passo que podia sentir certa calmaria no horizonte. Já havia sido quase 1 hora frente o volante, evitando qualquer rua que indicasse ir pro meio da cidade.
Eu não queria correr o risco de ver mais daqueles monstros. Mas para chegar ao hotel, tinha que atravessar parte da cidade.
Daquele banco, dava pra ver muita fumaça subindo aos céus, como se toda a cidade estivesse em chamas ao mesmo tempo. Eu sabia que não era assim, mas certamente estava um verdadeiro caos ali dentro. Alguns carros passavam desgovernados pela rua. Dava facilmente pra notar pessoas fugindo da cidade, e hora ou outra um desses malditos zumbis atravessando as rodovias. Já havia atropelado três que ousaram entrar frente o capô, sem a menor pena de os levar para o inferno.
Porém, aparentemente alguns minutos depois de atravessar o último ao meio, em alta velocidade. O choque fez o carro acordar, e ir perdendo a pouca gasolina que tinha, até lentamente ir parando, me dando tempo apenas de não estacionar no meio da rodovia.
Pegando meu headphone e o cartucho com minhas músicas, sai do automóvel analisando ao redor. De um lado da rua uma extensa mata, com morros bonitos ao fundo. Era estranho como havia uma área natural tão grande ao lado da cidade.
Do outro lado, algumas lojas beira a calçada, com entradas para aquilo que seria o real movimento da cidade grande. Eu não tinha muita escolha. Era tentar roubar outro carro, ou me esconder em algum lugar.
Já havia se passado quase meio dia desde a última refeição, eu estava com fome demais pra pensar tanto. E foi o que resolvi seguir, caminhando silenciosamente entre os carros na rua, evitando zumbis espalhados pela rua, comendo corpos já mortos no chão.
Era uma cena aterrorizante se você me perguntar. E sempre que parava atrás de uma loja, respirava fundo e tentava não vomitar ao relembrar as cenas brutais na rua. Pessoas correndo, fugindo, e mesmo assim muitas sendo pegas.
Evitei todas, independente da situação. Me envolver agora só deixaria a situação pior futuramente. Eu não era um super-herói, e muito menos queria me tornar um. Mas, no fim, ainda doía dentro de mim ter que agir daquela forma.
Quase 30 minutos de caminhada depois, cheguei até a entrada de um colégio, murado por completo. Analisei o portão entre aberto. Haveria gente ali, principalmente pelo fato de ter um carro estacionado no canto do estacionamento.
Retirei a arma do coldre, colei a parede e mansamente adentrei o recinto. Uma certa cabine ao lado de dentro, com uma janela de vidro transparente, ao qual indaguei ser do vigia. Um corredor liso seguindo até a entrada interna, que levava para uma escadaria com várias portas antes dela.
A imagem do aeroporto me veio a mente, enquanto tentava me concentrar no fato de que precisava tomar cuidado ali. Apesar de não saber bem o porquê, me pergunto, eu era algum tipo de suicida? Ou somente um louco?
Segui sem a resposta, ignorando os outros corredores na entrada, indo apenas até a escadaria. Precisava achar uma sala segura, e de preferência com acesso total às câmeras. E logicamente, o diretor deveria possuir tais credenciais.
As portas desgastadas de madeira, com tapetes sujos e marcas de lama espalhadas pelo chão. Aquilo me deixava curioso, sobre como tudo havia ocorrido. Como tantas pessoas haviam sido atingidas daquela forma? Como tão rápido?
Num toque minha mente voltou a ativa. O som de algo caindo ao chão, quase 10 metros a frente, virando em um corredor a direita. Direcionei minha arma até lá, esperando que o primeiro rosto aparecesse para dar o primeiro disparo.
Porém nada se fez, e aquilo me causou certa ansiedade pelo confronto. Não gostava de ser reativo, visto que isso poderia facilmente não me permitir defesa, enquanto um silêncio assustador se fazia cada vez mais.
Eu sabia que havia alguém ali, mas atirar de forma precipitada poderia me custar caro. Engoli em seco, dando dois passos a frente, junto a parede contrária do corredor em que meu inimigo estava. Queria poder achar um ângulo onde poderia atirar com a melhor distância segura. Era difícil, e antes de dar o terceiro passo, algo foi arremessado para o outro lado, próximo a mim.
Instantaneamente meus olhos seguiram o objeto, notando um celular atingir o chão enquanto um passo forte era ouvido.
Meus olhos saíram do celular e voltaram aquele corredor a 7 metros, sendo surpreendidos por um jovem correndo em direção a mim. Não conseguia ver seus olhos que eram recobertos pelo cabelo. Em sua mão uma espada, e eu não precisava pensar muito pra saber que eu era um alvo fácil.
Meus dedos agiram de imediato, dando o primeiro disparo convencido, porém mais pela adrenalina do que propriamente a razão. A uma distância tão curta, não precisava me preparar tanto, iria acertar com maior facilidade. Ao menos foi o que pensei, até ver a bala ser refletida sobre o brilho da espada e atingir a parede.
Meus olhos arregalaram sem entender. Aquele cara, havia simplesmente conseguido bloquear o projétil, usando sua espada de escudo. Engoli em seco surpreso, não sabia como diabos ele havia conseguido tal feito, porém não tinha tempo pra me impressionar.
Meus dedos se prontificaram a dar o próximo disparo. Talvez fosse tarde demais pra ser fatal, porém ele havia sacrificado sua chance para se proteger. Não iria escapar tão facilmente do segundo disparo.
Naquele instante, um brilho fino se fez em meus olhos, o reflexo dourado em um outro ataque. Porém, desta vez não parecia em mim diretamente, e não tive muita reação para conseguir escapar.
Uma garota que se escondia atrás do movimento do primeiro cara, portava uma lança dourada em mãos, com a ponta esticada na minha direção, de baixo pra cima.
Joguei o corpo pra trás, já desistindo da arma que estava em minhas mãos. E no fim, percebi que era o que a garota queria. A ponta da lança atingiu minha pistola, jogando ela pro alto enquanto eu dava um salto pra trás, já levando a outra mão para a outra arma em meu coldre.
Porém, antes que eu pudesse sacar a mesma senti algo afiado tocar a ponta de meu pescoço. Meus olhos saíram da área do óculos, mirando o sorriso convencido do garoto de olhos castanhos que já estava ao meu lado.
— Tire a mão do coldre. Ou irei separar sua cabeça do corpo. — Ele ordenou sério, e pude notar em seus olhos que não havia piada em suas palavras.
Engoli em seco, não gostava da ideia de me render tão facilmente. Aqueles dois, possuíam uma sincronia absurda. Rapidamente percebi que eles haviam planejado isso desde o início, e só estavam esperando eu me aproximar o suficiente pra agir.
Lentamente retirei a mão do coldre, e seguindo o movimento de mão dele, levantando as minhas para o céu.
No exato instante a garota se aproximou, afastando a delicada franja dos olhos, revelando aquele castanho escuro brilhante. Sem a menor gentileza a mesma puxou a outra arma em meu coldre, sem se importar com a sutileza de me empurrar um pouco para trás, e fazer a lâmina dar um pequeno toque sobre minha pele.
— Quem são vocês? — Respondi analisando um pouco os dois. Possuíam certos traços orientais, e eram bem bonitos.
Pela coloração negra do cabelo, e a similaridade com brilhos azuis nos fios, notei que as coincidências eram grandes demais. Aparentemente ambos eram irmãos, o que explicava muita coisa sobre a sincronia.
Para meu azar a garota pegou a arma que estava junto a minha coxa, me deixando totalmente desarmado e sem muitas opções de fuga.
— Nós fazemos as perguntas aqui. — Ele disse firme, sem me dar muita brecha pra criar amizade.
— Eh? E o que custa me responder? — Indaguei abaixando os braços, já pouco me importando com a atitude que ele tomaria.
Observei o sorriso sumir, enquanto ele flexionava a sombracelha surpreso com minha atitude.
— Você não é muito convencido pra quem está desarmado? — Ele indagou, tinha uma voz leve e doce, não transparecia muito aquele ar maligno que imaginei. Pelo contrário, pensando agora, era uma voz bem altruísta e inspiradora.
— E o que eu posso fazer? Se quer me matar, vá em frente. — Respondi me afastado da lâmina e caminhando até a parede.
O moreno não chegou a fazer nada, enquanto me encarava de olhos cerrados e girando a katana com habilidade, guardou-a junto bainha acoplada ao cinto.
— Meu nome é Ayato. E essa é minha irmã, Valentina. — Ele sorriu de canto, esbanjando confiança enquanto falava.
— Você se chama Ayato e sua irmã Valentina? Como? — Indaguei curioso, afinal era uma dúvida justa.
A garota me encarou nos olhos pela primeira vez. Por alguns segundos senti meu corpo arrepiar, era como se ela pudesse ler minha alma e me desprezar ao mesmo tempo. E eu reconhecia aquele olhar em sua íris. Assim como eu, era uma pupila escura, vazia, cheia de dor.
Meus pensamentos se perderam naquele olhar, ao passo que por alguns segundos não consegui parar de encara-la. Ela não sorria, não tinha raiva, medo, sequer ansiedade. Era como olhar para um muro, e mesmo assim poder ver várias frustrações em seu olhar.
— E qual o seu nome? – Disse Ayato chegando próximo a mim, e se agachando analisou meus olhos frente a frente.
— Eu... Eu sou Edward...
Estava um pouco perdido, me perguntando pelo que eles haviam passado. Eram tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes.
Ayato tinha um sorriso sincero, um olhar brilhante e uma aura conquistadora. Por algum motivo, eu me sentia meio oprimido próximo dele. Já sua irmã gêmea, era o total oposto disso. Seu olhar era frio, sério, pouco amigável. Ambos eram da minha altura, e analisando seus braços pude notar que tinham um físico considerável, diferente do meu. E por sua velocidade e sincronia, sabia que eles praticavam artes marciais.
— O que você veio fazer aqui, Edward? — Ayato continuou me encarando, enquanto procurava respostas.
— Eu estava com fome, já ocorreu muita coisa, estou cansado. — Sem entender agi de forma sincera, talvez convertido por aquela energia forte dele.
Foi então que comecei a reparar em suas roupas, e notei que Ayato usava calça e camiseta esportiva, de um time escolar. Mas não parecia ser futebol, ao menos não a camiseta. Em seu braço, junto a manga da camisa, uma braçadeira com um C em branco, ao qual logo reconheci.
— Capitão... – Disse em reflexo, apesar de jurar que era somente em minha cabeça.
— Oi? – Por costume ou impulso Ayato respondeu, meio confuso.
— Ahn, nada nada. Eu só notei ah... – Apontei pra braçadeira, enquanto tentava raciocinar sobre aquela situação.
— Eu jogo Handebol. Venha, vamos te dar algo pra comer. – Ayato se levantou, e estendeu a mão para que eu me apoiasse nele.
Aquela sensação me causou um certo conforto. Foi então que entendi porque me sentia assim. A forma como ele agia, sua voz e até a energia que exalava; era como Robert falava de mamãe.
Sem me conter, peguei na mão dele, e com um impulso me vi em pé novamente. Ayato me soltou, e voltou a caminhar em direção ao corredor onde estava. Aparentemente ele sabia bem o caminho, então só me deixei ser guiado. Não queria mais ficar me perguntando o porquê.
Entre olhadas de canto, observava Valentina, com seus leves tons azuis brilhando quando a luz tocava. Era tão silenciosa e quieta, que se eu não a estivesse vendo, poderia jurar que não estava ali.
Seus passos eram leves, e eu mal podia ouvir o som das botas negras que ela usava. A calça jeans apertada marcava bem suas coxas, e pude notar que possuía alguns músculos bem treinados pelo corpo todo.
Ayato por outro lado, mesmo sendo tão silencioso quanto, exalava uma energia incrivelmente estranha. Eu diria que mesmo sem o ver, podia sentir seu brilho. Talvez pela forma como ele sorria de canto.
— Como você fez aquilo? – Indaguei com indiferença, tentando não olhar muito para ambos.
— O que? – Ele respondeu, voltando a olhar meu rosto e analisando minha face.
— Você sabe, o lance com a espada...
Ainda estava pensativo sobre isso. Afinal como ele havia conseguido desviar um tiro direto, apenas usando uma espada? Eu só havia visto algo assim nos filmes.
— É uma katana, e pra ser sincero, foi a única coisa que veio a minha mente na hora, mas eu não sabia se daria certo. — Ele sorriu enquanto tocava o cabo da arma.
Meus olhos arregalaram de imediato, e mal pude esconder o quanto aquela ideia era incrivelmente idiota.
— Mas, e se tivesse dado errado? Você não pensa?? — Respondi, ainda incrédulo com a forma absurda de sua inconsequência.
— Bem, então eu teria levado o tiro, e nós dois iríamos morrer. Não era como se eu tivesse muitas opções, sabe? – Ele virou em um corredor, analisando o alto das paredes.
— Por que eu iria morrer? – Indaguei revirando os olhos por ali, tentando achar o que ele buscava, mesmo sem saber o que seria.
O corredor era extenso, e haviam muitas salas fechadas. Em sua maioria janelas de vidro, cadeiras novas e um silêncio assustador.
Era estranho sentir tanta paz num local assim. Mais do que isso, me ficava a perguntar quantas pessoas deveriam estar ali naquele momento, e quantas dessas já haviam morrido.
— Eu iria morrer com o tiro. Agora você, eu não sei. Mas não acha que minha irmã iria te matar rápido. – Ele gargalhou de forma forçada, como se quisesse aliviar a tensão.
Me mantive em silêncio. Meus olhos se dirigiram novamente pra garota a frente, que caminhava com um solitário bastão em suas mãos. Eu ainda não havia visto corretamente o rosto dela, não ao ponto de admirar, mas a breve silhueta que tive me fez notar o quão bela era.
Repentinamente Ayato parou no corredor, virou o corpo em direção a parede e estendendo a mão disse rente uma câmera.
— Alice! Já estamos com ele. Vamos no refeitório comer algo! Logo vamos praí! — Ele sorriu levemente empolgado, apesar de no fundo eu sentir que ele parecia muito forçar uma alegria inexistente.
Resolvi guardar aqueles pensamentos pra mim, afinal não era como se eu tivesse muita escolha. Eu não o conhecia, não podia me meter em seus problemas sem ser chamado. E pra falar a verdade, eu também não queria. Minha cabeça estava cansada, e eu ainda processava com dificuldade a morte de Kei e Naomi.
— Você veste umas roupas bem caras... mora pra onde? — Ayato voltou a caminhar mansamente ao meu lado, enquanto seguia o traço da irmã.
— São apenas trapos velhos. Eu não gosto de gastar com roupas. – Analisei o moletom, enquanto minha mente tentava focar naquela situação.
— Aconteceu algo? Você está bem? – Para minha surpresa, Ayato foi direto ao ponto.
Meus olhos miraram os dele, e pude sentir um real toque de preocupação em sua voz. Não sabia como explicar, mas entendi que de alguma forma, ele sabia como eu estava me sentindo.
Foi quando me dei conta. Não era apenas eu ali. Todos estavam na mesma situação. Então ele me compreender apenas com um olhar, mostrou que sabia o que eu estava passando, mais que isso, ele também havia perdido alguém.
— Acho que só um pouco de sono, devo melhorar depois de comer e dormir. Onde estão as camas aqui em? – Abri um leve sorriso, passando a mão pela barriga e olhando aos redores com certa empolgação. Eu não gostava de preocupar os outros, em fazia ficar pior.
Ayato me encarou de forma inusitada, e logo sorriu como um motor ligando aos poucos. Ele também resolveu ignorar já que eu não queria falar sobre, e lembrei que homens são assim. Não falam sobre seus problemas na maioria dos casos, mas parece que quando fingem juntos que não existe nada de ruim, a dor ou a culpa se tornam pequenas ao ponto de não serem notadas.
Quer dizer, ao menos havia sido assim com Robert, e agora com Ayato também.
Chegamos finalmente ao refeitório, e para minha surpresa Valentina já estava na mesa, com uma porção inusitada de pães secos, manteiga e um pouco de café.
Imaginei que eles não era tão rápidos, então provavelmente souberam que eu estava no local enquanto comiam. Olhei para os lados, e no imenso refeitório lotado de cadeiras e mesas vazias, existia apenas algumas caixas de som em pilastras brancas.
— Quantas pessoas estão aqui? – Indaguei caminhando até a mesa onde Valentina estava. Apesar da certa insegurança me sentei a sua frente, enquanto observava Ayato sorrir com minha cautela.
— Até o momento nós três e Alice. Ela está na diretoria, organizando algumas coisas. Logo iremos pra lá. – Ele sorriu, voltando a pegar um pedaço de pão sobre um prato.
Foi fácil notar que eles haviam interrompido a refeição por minha causa. Mais que isso, estavam revezando na segurança, para vigiar.
— Não havia ninguém quando chegaram aqui? – Analisei ao redor, enquanto esticava a mão para alcançar um copo de plástico e encher de café.
— Mais ou menos. Tinha alguns seguranças. Quando falamos da situação eles resolveram ir embora...
Ayato não precisou finalizar pra eu entender o restante da história. Aquele colégio era em uma área mais afastava do grande público. Provavelmente por ser nova, afinal os materiais eram incrivelmente limpos ali.
Me peguei pensando no que eu faria se estivesse em Londres e soubesse disso. Foi então que Ayato me explicou, que os seguranças haviam decido ir até suas famílias. Aquele tom triste eu reconhecia, e pela forma como Valentina mal olhava pra comida no prato, tive certeza que eles haviam perdido alguém.
— E você Edward, está sozinho mesmo? – Ayato me notou olhando pra Valentina, e tentou distrair aquele assunto tenso. Talvez apenas quisesse evitar perguntas.
— Mais ou menos. Eu... — Keito e Naomi vieram a mente, e eu só não soube bem como explicar tudo. – Eu... É, estou sozinho sim.
Resolvi seguir a mesma atitude que eles, e decidi não falar sobre. Não queria me sentir um peso, e muito menos ser consolado por dois desconhecidos que estavam piores do que eu.
— Você é daqui? Digo, da cidade. Não parece muito. — Ele perguntou, insinuando com o olhar para as minhas vestimentas.
— Não, sou de Londres. — Me arrisquei a dar o primeiro gole no café, me perguntando se teria o mesmo gosto de um bom vinho, já que a aparência era levemente parecida.
No primeiro gole minha garganta fechou de forma amarga, enquanto eu analisava a caneca sem entender.
Ayato riu da atitude, e pegando a caneca de minha mão, aproximou de uma pequena vasilha de ferro, virando ela e derramando uma boa quantidade de açúcar dentro da bebida.
Colocando uma colherzinha dentro ele mexeu a bebida, e me devolveu me aconselhando a testar. Engoli em seco analisando meu reflexo na bebida, enquanto fechava os olhos e voltava a dar um leve gole.
Meus olhos abriram curioso, enquanto eu notava um gosto doce no início e levemente amargo no final. Não era perfeito ainda, mas havia se tornado incrivelmente bom. Sorri pra mim mesmo, enquanto balançava a cabeça e pegava um pedaço de pão seco.
— Foi muito jovem pra Londres? – Ayato deu uma mordida forte e convencida no seu pedaço de pão.
— Eu sou de lá, nascido.
— Espera, você não é brasileiro? – Ele indagou surpreso, com a sobrancelha arqueada.
— Ahn... Não...
— E como você fala português tão bem? – Ayato se aproximou levemente, tentando notar algum traço em mim, que comprovaria que eu não era brasileiro.
— Eu cresci em um orfanato em que a maioria dos padres eram brasileiros. Acabei aprendendo com o cotidiano.
Por alguns segundos fiquei a relembrar aqueles momentos. Nunca havia imaginado que crescer num orfanato me seria útil numa situação assim. Apesar do hotel ser aqui, nada iria garantir que eu falasse tão bem, e entendesse muitas gírias, sem crescer ao lado de pessoas acostumadas com elas.
Eu odiava lembrar aquele orfanato, e das coisas que passei crescendo ali. As piadas, as brincadeiras, e sobretudo as várias surras sem motivo. Um local cheio de pessoas frustradas, que tinham como único alívio, descontar suas inseguranças naqueles que nada podiam fazer.
Meu foco sumiu, quando uma tosse forçada se fez mais alta do que o normal. Olhei pra cima, até mirar uma caixa de som ligada.
— Ay, Tina. Tem mais pessoas vindo, agora são muitas... E eles estão sendo seguidos por zumbis...
Ayato levou a mão ao rosto ao finalizar do anúncio. Uma voz feminina levemente doce. Estava meio curioso pata saber quem era essa tal Alice.
— Não era mais fácil só trancar o portão? – Encarei Ayato, sem entender porque eles não haviam fechado o mesmo.
— Seria bom, mas ele é elétrico e um dos seguranças quebrou o controle enquanto saia desgovernado. Alice está a quase uma hora tentando concertar... – Ele completou, enquanto mordia mais um pouco em seu pão amanteigado e de esticava pra lutar.
— Eu posso tentar concertar. Onde ele está? – Indaguei pensando se ele iria partir parar lutar.
— Não vou duvidar que consiga, mas primeiro temos que impedir que monstros entrem aqui. E claro, salvar os que precisam de nós...
O rapaz se levantou, confiante e com um olhar sério. Sua mão foi até o cabo da katana, e por alguns sentidos senti como se tivesse frente a um general. Ele era incrivelmente convicto e confiante, dava pra sentir apenas o olhando.
— Você irá nos ajudar? — Ayato se virou pra mim.
Valentina levantou, sem sequer tocar na comida. Pegando seu bastão ela deu o primeiro passo ao lado do irmão, esperando por ele e apenas por ele, para seguir adiante. Era como se eu fosse invisível aos seus olhos.
Meus olhos foram ao chão, pensativo sobre aquilo. Minha cabeça estava doendo, e eu visivelmente não estava empolgado para aquela empreitada.
— Não estão cansados, disso tudo...? – Apesar da determinação, minha voz acabou por soar bem tristonha.
Eu não queria lutar de novo. Não queria me arriscar, não queria ter que ver mais pessoas mortas. Ou sequer imaginar que estivessem.
Minhas costas foram até a parte traseira da cadeira de plástico, e eu não consegui olhar para a dupla de irmãos. Meu corpo parecia pesado, e eu sinceramente tinha vontade de apenas deitar no chão, respirar fundo e fechar os olhos.
Não era preguiça, não era medo. Eu simplesmente não sentia nada, e por alguns instantes senti que talvez se eu ignorasse tudo, eu me fundiria ao chão e nunca mais iria ter que pensar tanto nas coisas.
— É, estamos sim. Mais do que você imagina... – Ayato olhou pra Valentina, e pelo canto do olho pude perceber que ela me olhava de soslaio.
— Então, por que vocês lutam tanto? – Era uma pergunta tola. Nenhum de nós queria morrer. Mas o contrário disso não significava que estavamos vivos, e eu sabia bem.
Ayato respirou fundo, e eu senti que havia feito um bom questionamento.
Levando a mão ao rosto ele retirou a franja e a jogou pro lado, enquanto seu rosto levemente pálido brilhou.
— Dizer causas nobres ou belas palavras não vão me fazer querer lutar mais. Porém, já passei por outras coisas que achei que não venceria. E bem, estou aqui agora. Eu posso ter perdido muito, mas não é como se eu não tivesse mais nada a proteger. Por enquanto, eu só posso sobreviver, e bem é meio lógico que eu não quero morrer... – Ayato sorriu, soltando os cabelos e me encarando de novo. – Na verdade, não é muito difícil. A única coisa que preciso fazer é sobreviver. É bem mais fácil escolher um caminho quando só tem uma estrada, do que decidir um entre várias.
— Mesmo sem saber o fim? – Indaguei uma última vez. Apesar de já estar convencido a lutar.
— Se eu soubesse o fim, talvez acabasse não fazendo tudo certo como deveria. De toda forma, não farei com que o sacrifício daqueles que me deixaram vivo seja em vão. Estou indo. – Ele se virou, e sem dar o menor tempo de resposta começou a caminhar, indo em direção a saída.
Meu coração vibrou de alguma forma. Não era como se fosse incrivelmente impactante, e muito menos as palavras mais encorajadoras do mundo. Mas eu senti sinceridade nelas, e mais do que isso, senti verdade. Isso bastava.
Porque enquanto ele falava aquela última frase, minha mente brilhou com as lembranças. Minha mãe, Annabeth, Meu tio, Keito e Naomi. Muitas pessoas haviam de alguma forma se sacrificado por mim, e me salvado.
Se para mim existia sentido e valor na minha vida? Particularmente não. Mas pessoas com quem compartilhei ideias, sentimentos e memórias, viam valor. Independente de eu acreditar ou achar certo, deveria respeitar suas crenças em mim. E viver, até eu mesmo achar meu próprio valor.
Me levantei, talvez mais determinado do que imaginei que estaria. Meus braços estavam mais leves, a arma estava esquentando, e eu sentia a ponta dos pés queimando. Era a terceira vez na vida que sentia uma ansiedade por realizar algo útil, talvez.
Segui Ayato, determinado a lutar também. Acelerei o passo, até chegar ao seu lado, enquanto observava Valentina a nossa frente. Seus cabelos balançavam conforme ela andava, e eu podia notar que de certa forma, ela parecia menos tensa. Me perguntei se também estava inspirada pelas palavras do irmão.
— Então capitão, qual seu plano? – Sorri, observando empolgado o caminho.
— Capitão? – Ayato me encarou desentendido.
— Você é nosso líder, mas capitão soa bem melhor. – Sorri relembrando o termo.
— Você é um cara bem estranho. Mas até que eu acho daora a forma como você se empolga rápido. – Ele riu abertamente, enquanto sacava a katana.
— Ay, eles estão começando a entrar. Um grupo com umas 15 pessoas. E tem o dobro de zumbis atrás.
Alice avisou pelas caixas de som, espalhadas. E pude perceber que ela estava ligando apenas a que queria comunicar a dupla. Foi desta forma que eu não havia ouvido nada, e que eles tão inteligentemente haviam conseguido me emboscar no corredor.
— É, acho que teremos um pouco de trabalho... Tem balas o suficiente? – Ayato acelerou o passo, querendo chegar a um ponto primeiro que eles.
— Acho que consigo me virar... Vamos ver do que esses monstros são capazes...
Sorri. Sacando a arma e destravando a mesma, enquanto meus olhos seguiam a frente do corredor.
Iria lutar ao lado daquele trio, porque mesmo sem conhece-los direito, de alguma forma, senti que quando eu me cansasse, teria ajuda pra prosseguir. E agora estava eu, finalmente determinado a lutar de verdade, e proteger alguém além de mim mesmo.